Vimos tratando sobre a revisão diária nesta série recente de artigos e já abordamos o respaldo científico do benefício de práticas similares a ela (journaling), no que ela se distingue e como realizá-la. Vamos colocar foco, neste momento, em dois atributos que constituem requisitos para um progredir exitoso nesta dimensão do Caminho, e por consequência, no processo de autotransformação como um todo.
Correndo o risco de repetir conceitos anteriormente mencionados, ou implicitamente já compreendidos, é conveniente aprofundar um pouco mais no âmbito da atitude do pathworker em relação à revisão diária. É nosso anseio que o resultado do esforço despendido na revisão diária seja o melhor possível, o que pede uma consciência alinhada a algumas coisas muito fundamentais, como veremos.
O primeiro requisito de que trataremos é o compromisso. Sabemos que ele é um atributo muito valioso para qualquer
caminho espiritual e devemos entendê-lo como a resolução de ser perseverante com o propósito estabelecido para a própria vida. Vejamos como o Guia aborda a questão:
"Deixe-nos, primeiro, falar de compromisso. O que realmente
significa compromisso? Usamos esta palavra repetidamente sem, realmente,
entender e explorar o seu significado. Ela significa, acima de tudo, uma
atenção direcionada, uma doação do self através de uma atitude sincera qualquer
que seja o âmbito do compromisso. Se vocês estão comprometidos em dar o melhor
de si inteiramente ao que quer que seja, vocês irão se concentrar em todos os ângulos
do assunto. Vocês não temerão investir todas as suas energias, toda a sua
atenção. Usarão todas as faculdades disponíveis de pensamento, intuição e
meditação. Em outras palavras, vocês usarão todas as suas energias físicas, a
sua capacidade mental, seus sentimentos e sua vontade para ativar os poderes
espirituais ainda adormecidos e não manifestos a fim de tornar a aventura
construtiva. Isto requer uma totalidade de abordagem que só pode vir quando a
vontade não for rompida pelas forças contrárias negativas. Para se estar completamente comprometido, não deve haver intencionalidade
negativa". Palestra 196 – Compromisso – Causa e efeito –, pág 01.
Tornar cada vez mais conscientes os aspectos do eu inferior ― intencionalidades negativas e imagens, por exemplo ― até então inconscientes acabará por, gradualmente, ir tirando deles o seu poder de criação negativa. Teremos, em tal caso, um discernimento mais amplo para fazer novas escolhas, para ter atenção conosco mesmos onde já sabemos que é preciso, para reeducar padrões de pensamento baseados em falsas premissas. Com o tempo, a transformação necessária irá acontecer e nosso renovado compromisso significará uma importante conquista pessoal.
A pessoa que já possui um grau razoável de autodisciplina para manter a regularidade esperada da revisão diária, de antemão possui pelo menos um dos dois requisitos para a efetividade desta prática no
processo de autoconhecimento e autoenfrentamento. O senso de compromisso enseja a organização e motivação interna para agir de forma alinhada ao propósito. Caso o pathworker não possua este atributo ainda desenvolvido, então o próprio foco e empenho na revisão diária será um exercício muito útil para seu gradual fortalecimento. Como diz a sabedoria popular, "a prática faz o mestre".
Isto ocorre porque a perseverança no hábito de fazer as revisões diárias é um eficaz remédio para identificar as intencionalidades negativas que, como alertou o Guia no trecho acima, são o principal obstáculo ao compromisso, seja com a própria revisão diária ou com outra dimensão do trabalho do autoconhecimento. Em suma, a frequência e a perseverança são importantes no processo da revisão diária. E acredite, com o tempo, incorporamos com leveza o hábito da revisar nossas desarmonias do dia.
O segundo requisito para a prática da revisão diária é
a honestidade consigo mesmo. Sabemos que o eu inferior faz de
tudo para não ser identificado ou para tentar projetar a culpa nos outros. Cada
pessoa com quem nos relacionamos também tem seu eu inferior, que pode nos
afetar. Da mesma forma, nosso eu inferior certamente atinge os outros de formas muito
particulares. O Guia chama este processo de "afetar e ser
afetado". Não importa se a negatividade original é do outro, e minha
reação emocional é de uma negatividade secundária, reativa, ou se sou eu a
iniciar uma reação no outro a partir de minha própria negatividade interior. O
autoenfrentamento requer que o foco esteja em nossas próprias distorções e
reações, sejam elas primárias ou secundárias (reativas), e isto pede honestidade, na sua expressão correlata de autorresponsabilidade. O Guia tratou desta conduta interna da seguinte maneira quando falava para um grupo de pathworkers pioneiros que, àquela altura, já tinham uma boa experiência neste Caminho:
"Vocês, meus amigos, que já foram até as profundezas e
revelaram aspectos do eu inferior, trazendo à tona a intencionalidade negativa
para poder exprimi-la, expô-la, vê-la tal como é, aprenderam neste processo,
pelo lado positivo, que isso é uma libertação. Vocês podem admitir esses
aspectos sem se tornarem proscritos, sem acreditar que este é seu verdadeiro
eu. Muito ao contrário, vivenciam a verdade que eu sempre lhes disse: quando as
intenções negativas permanecem em segredo, até mesmo da mente consciente, vocês
também acreditam, em segredo, que são totalmente maus. Isso se manifesta
através de padrões autodestrutivos que não compreendem e cuja origem não podem
determinar até que tenham a coragem e a honestidade de, primeiramente, revelar
especificamente a intenção negativa. Nesse momento, vejam bem, algo inesperado
começa a acontecer. Vocês se aceitam, se respeitam mais e sabem que aquela é
apenas uma pequenina parte do eu total. Conseguem identificar aspectos do eu
inferior sem se identificarem totalmente com eles". Palestra 222 – A Transformação do eu
inferior –, pág 02.
Antes de começar a
escrever a revisão do dia, é recomendável fazer uma breve oração para pedir clareza e coragem para olhar para a própria sombra e reconhecer tudo
aquilo que estiver disponível para ser visto no momento. Isto é de grande
ajuda, porque olhar continuamente para a diversidade de elementos de nosso eu
inferior testa até que ponto estamos dispostos a ir em nossa honestidade e
compromisso de reconhecer e trazer ao campo aberto da consciência tudo aquilo
que aparece.
Lentamente, a prática
da revisão diária fortalece o eu observador, o que permite um distanciamento
seguro para identificar o eu inferior, mas não se identificar com ele ―
“identificar para se desidentificar”. Isto explica o motivo do início da
prática da revisão diária ser a fase mais difícil: é quando a defesa é mais
acirrada, a autoidentificação com o eu inferior é muito maior e os recursos
internos de vivência, experiência, auto-observação e distanciamento estão ainda
muito incipientes.
Mesmo após esta etapa inicial mais desafiadora da
prática da revisão diária estar superada, será sempre necessário ousar ser
honesto e corajoso consigo mesmo para colocar em palavras, de forma cristalina,
o teor de pensamentos, sentimentos e intencionalidades negativas assentados
sobre ilusão, ódio, mesquinhez, tabus e até crueldade.
Um processo de defesa conhecido é o de manter partes de nosso universo interno inacessíveis à observação, enquanto nos permitimos acessar e elaborar outras correntes internas menos sensíveis, que por consequência nos causam menos resistência. Ou seja, um lugar de compromisso e honestidade seletivos, condicionado ao nível de desconforto que sentimos em colocar atenção nestas partes. Quando deixamos que esta situação ocorra, podemos até nos iludir de que estamos dando o máximo de nós ao processo de autoenfrentamento e autoconhecimento. Intimamente, porém, sabemos que não é o caso, e o resultado limitado da autopurificação desejada espelha a falha desta estratégia.
Mesmo o pathworker que já tem uma experiência prolongada com revisão diária e desenvolveu um eu observador mais robusto ― o que facilita o ato de sustentar o autoenfrentamento, por vezes tão árduo ― pode passar por situações e crises que o colocará na fronteira da zona de conforto do autorreconhecimento. É como se uma voz interna dissesse: “eu vou até este ponto, não mais”. A resistência, a culpa, a vergonha e a autodecepção podem se acirrar e atingir picos até então desconhecidos. Este é um ponto muito crítico na prática da revisão diária.
Corre-se o risco de sucumbir a racionalizações, a projeções de culpa, a
meias-verdades, à pura omissão. Trata-se sempre de um importante momento de escolha. O pathworker pode, então, expandir as fronteiras do espaço interno conhecido, elevar o nível de autoconsciência e prosperar em seu caminho pessoal, com a possibilidade de libertações significativas; ou pode se privar
da riqueza desse autorreconhecimento, reprimir para o inconsciente aquilo que
emergiu e estagnar no processo de autopurificação.
Quando se reúne a
honestidade para ir até o fim no reconhecimento da distorção
interna que emergiu no momento, o sentido interno de liberação que se percebe é
proporcional à tensão e aprisionamento que se deixou para trás. Trata-se de
liberação de energia psíquica. É como se a alma fosse preenchida por um vento
fresco, que traz segurança, abre portas internas, e dá a perspectiva de
que estamos progredindo.
Quando a coragem de ser
honesto consigo mesmo no autoenfrentamento da revisão diária for uma qualidade
já consolidada, então cairão por terra todas as supostas dificuldades que a defesa nutria e usava como justificativa para não a praticar. A revisão diária,
a despeito da sempre presente resistência de olhar para o eu inferior, se
tornará um hábito descomplicado. Mais ainda, o pathworker buscará a revisão diária, a
cada dia, para manter em curso seu processo de autoconhecimento e
para receber mais do efeito benéfico que ela traz, o que não será mais considerado como hipótese, mas confirmado por uma experiência pessoal inquestionável.
Muita paz!
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