O Inventário Pessoal (12) - As necessidades reais e falsas

A camada das necessidades reais reprimidas e das necessidades falsas substitutas, tema deste artigo, estão em um nível ainda mais profundo de nossa personalidade do que as imagens e intencionalidades negativas (já abordadas anteriormente). Pode-se afirmar que as necessidades falsas decorrem dos sentimentos experimentados pela criança quando ela se percebeu, verdadeira ou imaginariamente, privada do preenchimento de suas necessidades reais.

O impacto da dor da privação sentida pela criança, uma única ou reiteradas vezes, a depender da intensidade do evento e das características da realidade interior dela, pode desencadear a formulação de imagens específicas. Nesta camada das necessidades internas ― reais ou falsas ― compreenderemos (e sentiremos de novo) a origem de nossos conflitos e a repercussão disso na criação de nossa vida. Antes de aprofundarmos, cabe aqui um alerta positivo: este é um conceito chave para a autopurificação e o trabalho neste nível pode ser efetivamente libertador.

Percebe-se que, até este ponto, o inventário pessoal tem avançado para camadas cada vez mais profundas da realidade interna, necessitando, para isso, de níveis crescentes de autoconhecimento. Uma razoável base de auto-observação e autoconhecimento será necessária para se chegar ao ponto de começar a trabalhar eficientemente no nível das necessidades.

Como vimos fazendo, comecemos com uma breve conceituação das necessidades reais e falsas antes de passarmos às orientações sobre o trabalho prático de discernimento e investigação delas no escopo do inventário pessoal.

Necessidades reais e falsas, o que são?

Toda criança sofre dor e frustração em algum nível. A imagem principal surge quando a criança generaliza a situação infeliz, que pode ter sido verdadeiramente dolorosa, e assume uma rígida conclusão sobre a “realidade”. Esta conclusão acaba por tornar-se, na verdade, uma ilusão, fruto da lógica limitada da criança. E a imagem, por sua vez, determinará uma série de atitudes e sentimentos perante a vida e as pessoas, os quais moldarão a vida futura e, certamente, causarão irrealização e infelicidade. A situação infeliz que culminou na formação da imagem significou a privação, negação ou violação de uma necessidade real e legítima da criança como, por exemplo, o anseio de se sentir amada, valorizada e aceita em sua expressão pessoal.

A mágoa original que está na origem da formação de uma imagem começa a ser reprimida. Vocês não apenas reprimem essa mágoa, a ponto de deixarem de ter consciência dela, sentindo-a, ao contrário, como um clima vago e geral, mas reprimem também muitas de suas necessidades. Isso porque a experiência que levou à formação da imagem era tão dolorosa e tão humilhante que vocês não queriam encará-la. Além disso, a experiência fez vocês acreditarem que essas necessidades não podem ser satisfeitas, e assim vocês acreditam que é possível eliminar suas necessidades pelo simples fato de ignorá-las.” Palestra 093 – A conexão entre imagem principal, necessidades reprimidas e defesas −, pág. 03.

A imagem traz em si o gérmen da defesa interna que será assumida e desenvolvida posteriormente, como se fosse uma “solução”, para evitar que a criança passe novamente pelo sentimento de privação, dor e humilhação que o não atendimento de sua necessidade real lhe causou. A imagem e a necessidade falsa que se vincula a ela formam, portanto, uma estratégia de ação errada, que nos desconecta de nossos sentimentos e reduz todo o nosso campo emocional devido às assunções inverossímeis feitas sobre as pessoas e a realidade da vida. 

Existem, então, basicamente dois tipos de necessidades: as necessidades reais e as da autoimagem idealizada ― que chamamos necessidades falsas. 

As necessidades reais são instintivas e estão relacionadas com os dois princípios básicos da autopreservação e da procriação. Em sua origem, são necessidades legítimas e normais, mas, se forem reprimidas e negligenciadas, podem se deslocar de sua expressão primária e se tornar muito destrutivas, criando o segundo tipo de necessidades, as falsas, ligadas à autoimagem idealizada.
 
As necessidades falsas se caracterizam pela obstinação por glória, por triunfo e por qualquer modo de satisfazer o orgulho e a vaidade. Na ânsia de satisfazê-las, acabamos agindo de maneira essencialmente contrária aos nossos melhores interesses. O resultado é que nossa alma fica ainda mais “faminta”, irrealizada e decepcionada. 

Esse é um processo que não tem como dar certo, pois está assentado sobre diversas ilusões. As necessidades falsas nunca serão satisfeitas, justamente porque são deslocamentos. Necessidades falsas são fonte de um núcleo de sentimentos muito negativos: ressentimento, desesperança, vitimismo, culpa, não merecimento, auto-ódio e até crueldade. Elas geram intencionalidade negativa, que busca punir aqueles que a criança julga responsáveis pela sua irrealização pessoal. A repressão desses sentimentos por longo tempo acaba por potencializá-los, até que surjam as crises, uma atrás da outra, o que acaba por confirmar a premissa errônea da imagem. O conflito original é atualizado, mas a pessoa autoalienada não consegue perceber como ela mesma recriou, desnecessariamente, aquela manifestação.  

Em vez de nos darmos conta do erro intrínseco de nossas defesas, reforçamo-las com a obstinação de que a próxima vez será diferente e dará certo. O efeito disso é uma repressão ainda maior de nossa necessidade real original. 

Necessidades reais e falsas do Pathwork
Investigue o que você sente necessidade, legitimamente ou não, como criança e adulto.

Esse processo pode tomar uma variedade infinita de combinações, afetando áreas diversas da vida, mas é, sobretudo, único e pessoal; somente cada pessoa pode, com seu próprio empenho, reconhecer e desenrolar o modo específico como ele se dá em seu inconsciente. Tudo necessitará ser reconhecido ― olhar o mal de frente, mas sem se identificar com ele ― e, principalmente, todo sentimento, antes reprimido, terá que ser experimentado. A dor original precisará ser acessada, deixando em campo aberto o sentimento de humilhação, de inferioridade e o medo de ser uma pessoa não merecedora de ser amada. Será preciso coragem para fazer este autoenfrentamento. Caso sinta que a coragem está faltando, rogue por ela. Todo esse trabalho, todavia, deve ser feito sem moralismo e julgamento. Esse temido portal terá de ser corajosamente atravessado. 

Resistimos enormemente a encarar esses sentimentos originais reprimidos, mas atravessá-los mostrará que, essencialmente, são nossas defesas que não são amáveis (quando 
percebidas pelas pessoas), e não nós. Nossas defesas se constituem da autoimagem idealizada, da assunção das pseudossoluções de submissão, agressividade ou retirada (as máscaras do amor, poder e serenidade), mas também de um clima interno de negação de nossos sentimentos originais e das nossas necessidades reais, o qual, na maioria das vezes, falhamos em reconhecer.
 
Ficamos divididos, com uma parte dizendo “não” à necessidade real, enquanto outra parte da alma luta pela gratificação dela em um clima interno de hostilidade contra o mundo, o que não dá certo. 
A alma pode tranquilamente prescindir da necessidade falsa e da ânsia que ela causa, mas a personalidade em distorção fica aprisionada nessa espécie de compulsão. Enquanto esse mecanismo não for revertido, a necessidade real ficará encoberta e miseravelmente insatisfeita.

Quando descobrimos cada uma das nossas necessidades mais legítimas e primitivas, podemos então ver como, quando e por que criamos os mecanismos de defesa que sabotaram, e continuam a sabotar, o preenchimento da necessidade real. 

Gradativamente, então, nos tornamos capazes de preencher, mesmo que parcialmente, as necessidades reais. Mesmo este pouco de preenchimento, longe ainda da demanda extrema da criança imatura, representa um enorme alívio para a alma. Passamos a saber que tudo de que precisamos depende de nós mesmos, não de algo ou alguém externo.
As necessidades falsas naturalmente diminuem em intensidade, até que, eventualmente, desaparecem.

Como trabalhar com as necessidades reais e falsas?

A descrição do conceito de necessidades reais e falsas, feita acima, deixa evidente os aspectos intelectual e emocional presentes no processo de autotransformação proposto pelo Pathwork. Para qualquer aspecto da personalidade a ser transmutado, há primeiro o “conheça-te a ti mesmo” da auto-observação e autoinvestigação, e depois o processo que atua com o foco no amadurecimento emocional. Esses dois aspectos são necessários, complementares e interdependentes. 

O inventário pessoal, entre outras dimensões deste Caminho, ajuda a construir a parte do autoconhecimento profundo. Por sua vez, o lado emocional da autotransformação ― onde a vitória sobre o eu inferior é definitivamente consumada ― é mais propriamente influenciado e aperfeiçoado por meio da terapia, da oração, da meditação e das vivências. 

Não obstante, tendo em vista o caráter nuclear que as necessidades reais não satisfeitas têm na gênese de nossos conflitos internos ― por meio da subsequente cristalização de imagens e engendramento de intencionalidades negativas, necessidades falsas e autoimagem idealizada, por exemplo ―, parece proveitoso que neste ponto em que são dadas orientações para o trabalho de autoinvestigação no âmbito do inventário, possamos ir um pouco mais além, fazendo uma ponte com técnicas que serão abordadas na dimensão sobre Meditação deste blogue. 

Dessa forma, os passos 1 a 3 descritos abaixo são o escopo sugerido para o autoestudo racional e escrito das necessidades falsas e reais. Os passos 4 e 5 adentram o campo do trabalho emocional a ser realizado com qualquer corrente distorcida da personalidade que haja intenção de purificar, mas que didaticamente descrevemos também aqui para delinear uma sequência mais completa de todo o processo.

1) Com base no seu autoconhecimento previamente conquistado, sobretudo após já ter caminhado bastante em sua autobiografia e no estudo de suas imagens pessoais e autoimagem idealizada, relacione, separadamente pelo tipo, todas as necessidades reais e falsas, da infância e da fase adulta, que você puder identificar.

A citação do Guia abaixo registra uma importante diferença entre as naturezas da necessidade real e da necessidade falsa:

A melhor forma de distinguir a real da falsa é considerar a satisfação que a necessidade traz a você e aos outros. A satisfação de uma necessidade falsa traz uma gratificação superficial, temporária, curta, muitas vezes à custa de outra pessoa ou à custa de uma necessidade mais premente de você mesmo. A satisfação de uma necessidade real, por outro lado, gera algo muito construtivo para todos os envolvidos e não vai prejudicar outros aspectos importantes da sua própria personalidade. É o resultado do crescimento e gera mais crescimento, além da felicidade e da satisfação. Palestra 092 Necessidades reprimidas, renunciando às necessidades cegas, reações primárias e secundárias , pág. 08.

2) Investigue de que forma você acha que o preenchimento de suas necessidades reais é proibido, errado ou não merecido. Esteja atento que as necessidades reais da criança não não necessariamente as mesmas da pessoa adulta.

Necessidades reais na pessoa amadurecida não são egoístas. São alinhadas com a lei do dar e receber e, por isso, não fazem exigências cegas. O Guia diz que as necessidades reais de um adulto são:

(...) autoexpressão, crescimento, desenvolvimento, alcance dos seus potenciais espirituais e tudo o mais que advém disso; prazer, amor, preenchimento, bons relacionamentos e fazer contribuições significativas para a ordem das coisas, no grande plano no qual todos têm uma tarefa.” Palestra 192 – Necessidades reais e necessidades falsas −, pág. 05.

3) Investigue como as necessidades falsas encobrem e, atualmente, privam a nutrição de suas necessidades reais e, ainda, quais as reações emocionais que este processo te causa e como ele afeta as outras pessoas.

A entrevista com familiares e pessoas íntimas, já mencionada neste blogue, bem como o feedback de colegas de Pathwork, são especialmente úteis para se conquistar uma clara noção de como as suas emanações e correntes internas impactam os outros.

4) Em meditação, busque acessar o campo emocional tanto das necessidades reais não satisfeitas e reprimidas quanto das necessidades falsas substitutas e se permita sentir todo o impacto dos sentimentos que vierem à tona. Junto à dor, perceba e sinta a presença da obstinação, o núcleo neurótico que não quer ceder nada. Este quarto passo representa um processo em si mesmo. Enquanto houver carga de dor residual, este acessar das emoções reprimidas deverá ser empreendido.

As necessidades legítimas só podem ser preenchidas na medida em que você experimenta os seus sentimentos originais e seus sentimentos residuais do passado. Isto significa você descobrir e renunciar às falsas necessidades que advém da negação da dor do preenchimento original. Deixe-se entrar no estado infantil e permita que as reações irracionais e destrutivas da criança em você se expressem agora. Quando você verdadeiramente toma posse desta parte sua, já é possível criar novo clima interior.” Palestra 192 – Necessidades reais e necessidades falsas −, pág. 05.

5) Busque encontrar em seu universo interno o “ponto de abandono”, ou “ponto de renúncia” das necessidades falsas. Trata-se de um lugar onde se pode conectar com partes mais amadurecidas do self e, assim, fazer, e imprimir na alma, a clara intenção de renunciar a obstinação das necessidades falsas ― saber onde a obstinação não tem jurisdição, perceber a realidade como ela é e ter força para fazer aquilo que é possível fazer ―, ao passo que se abre a consciência para a gradual nutrição das necessidades reais, mesmo que tal preenchimento não chegue perto do ideal de perfeição da demanda infantil.

Será necessário sustentar e atravessar sentimentos por vezes muito agudos de frustração. Isso faz parte do lento processo de entrega e amadurecimento emocional. Sobre este túnel de dor residual e frustração a ser atravessado, o Guia diz:

Quando perseguem a necessidade falsa, vocês carregam dor intolerável. A dor é, então, aguda, amarga, presa, com a conotação de desesperança. Dor bem diferente da dor da não realização, mágoa, privação. No momento em que não é canalizada para necessidades irreais, a dor pode ser dissolvida e se transformará na corrente de energia original, fluente, que traz vida. A dor aguda é resultado da luta contra o que é. A dor suave é resultado da aceitação.” Palestra 192 – Necessidades reais e necessidades falsas −, pág. 07.

Esse não é um processo fácil e não é superado de uma vez só. Ao contrário, precisa-se repetidamente reconhecer, investigar e acessar a dor original. Orgânica e lentamente, vamos nos dando conta, nos níveis mental e emocional, do absurdo de nossas imagens e defesas e de suas consequências negativas em nossa vida e na vida das outras pessoas. Lentamente, a expressão de nosso eu real vai emergindo após tanto tempo aprisionada. As reações do eu real podem até nos surpreender, por serem de uma natureza tão diferente e, às vezes, até oposta àquelas determinadas por nossas defesas. Mas há uma sabedoria intrínseca em nosso eu real, que vamos aprendendo a honrar e confiar.


Muita paz!

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